sábado, 22 de maio de 2010

Clube da Gula

"Paulo foi o último a chegar no jantar em que seria envenenado. Lucídio tinha confirmado: o prato da noite seria blanquette de veau. O prato favorito do Paulo. O condenado chegou com um grande pano vermelho sobre as costas, como uma capa. Procurara alguma coisa do seu passado de ativista político para trazer para seu sacrifício e não encontrara nada, fora alguns livros mofados. Improvisara a bandeira vermelha, que manteria sobre os ombros pelo resto da noite. Durante a qual só ele falou. Fez um histórico do seu engajamento, desde os seus tempos de estudante, passando pelo seu mandato de vereador, o tempo na clandestinidade, as manifestações, as missões secretas para o partido, a prisão, a eleição para deputado. E falou na traição. Sim, era verdade. Tinha traído, entregado companheiros. Tinha estado nas barricadas e na merda, enquanto nós levávamos nossas vidas médias sem qualquer grandeza, sem nem a exaltação da grande calhordice, da grande culpa. Tínhamos em comum a nossa fome, e o nosso fracasso, mas ele tinha tocado os extremos, ele era melhor do que nós, do que todos nós, inclusive os mortos. E a todas estas devorava os canapés, depois a tarte a lignon, depois vários pratos da vitela acompanhados por um Bordeaux branco seco que Pedro desencavara para a última refeição do seu colaborador. E quando Lucídio trouxe da cozinha a terrina com o que sobrara da blanquerre, não precisou perguntar quem queria mais. Paulo arrancou a terrina qu ente das suas mãos, sorveu o molho branco ruidosamente da terrina mesmo, depois colocou-a sobre a mesa e comeu o resto da vitela com as mãos, roncando, como se estivesse comendo o picadinho do Alberi.
Enquanto os outros comiam a sobremesa, Paulo ficou encurvado na sua cadeira, finalmente em silêncio, com a cabeça pendente e o olhar fixo na toalha. Não levantou a cabeça nem quando Lucídio, surpreendendo a todos, propôs-se a fazer o brinde final, o brinde do Ramos, com o conhaque.
- Não pode! - protestou Samuel - Você não é do Clube.
Mas eu, Pedro e Tiago o convencemos a deixar Lucídio falar. Afinal, o Clube já quase não existia mais.
Lucídio ergueu seu copo de conhaque. Era a primeira vez que aceitava o conhaque. E a primeira vez que não ficaria de pé ao lado da mesa, apenas respondendo a perguntas sobre os pratos que servia.
Ele tinha frustrado a minha expectativa de que seria um bom contador de histórias, e que teria outras histórias como a do clube do fugu para contar. Comportava-se como um cozinheiro agradecido por ser tratado como um igual pelos patrões e convidado a sentar à mesa, mas que conhecia o seu lugar e mantinha o respeito. Agora ia falar. Levantou o copo de conhaque olhando para Samuel e disse:
- Que todos os amigos tenham a recompensa das suas virtudes, e os inimigos uma medida do que merecem." (Luís Fernando Veríssimo)
Este texto de Veríssimo é simplesmente primoroso! Da coleção Plenos Pecados, o meu preferido; até porque a gula é o meu maior pecado. Um triller muito divertido no qual um grupo de amigos se entrega nas mãos de um psicopata pelo prazer de comer.
Só um "gostinho" dessa delícia para vocês! Quem quiser mais, sirva-se!